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21 - O processo de tradução (terceira parte)

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Depois de examinar o que significa, até em termos concretos, um enfoque orientado à adequação e um orientado à aceitabilidade, acreditamos que, ao indicar a principal dicotomia ideológica presente na base de toda tradução, temos ressaltado a distinção mais evidente e importante. Mas ainda estamos longe de ter proporcionado uma descrição completa dos critérios que permitem definir um modelo geral do processo tradutivo.

O estudioso dinamarquês L. Hjelmslev1 propôs distinguir, em um texto, a forma e substância do conteúdo e a forma e substância da expressão. Deste modo, o texto se divide em dois planos (expressão e conteúdo), cada um dos quais dividido em duas partes (forma e substância), dando lugar ao seguinte quadrinômio:

substância do conteúdo: é, em certo modo, objetiva, e não varia de uma língua para outra: refere-se a qualidades intrínsecas. Por exemplo, as cores podem ser descritas como uma gama de freqüências visíveis. O que em português chamamos "verde" corresponde, para a maioria de luso-falantes, a uma combinação de impressões vinculadas à percepção de longitudes de onda entre 5.000 e 5.700 angstrons. Portanto, num exame superficial da traduzibilidade do conceito "verde", podemos supor que é fácil transferi-lo para outra língua;

forma do conteúdo: em português, a palavra "verde" indica a substância de conteúdo que acabamos de descrever. Hjelmslev observa que a forma do conteúdo varia de uma língua para outra. Isto significa que não temos uma correspondência perfeita entre os campos semânticos de formas de conteúdo similares em idiomas distintos. Hjelmslev oferece como exemplo a ausência de correspondência dos nomes de cores que vão do verde ao marrom nos idiomas inglês e galês2;

 

green

gwyrdd

glas

blue

gray

llwyd

brown


Outro exemplo da falta de correspondência entre forma e substância de conteúdo em idiomas distintos temos a palavra portuguesa "aborto", que cobre o espectro semântico das palavras inglesas "abortion" (aborto provocado) e "miscarriage" (aborto espontâneo), ou a palavra inglesa "hair", que abarca o espectro semântico das palavras "pêlo" e "cabelo";

substância da expressão: é a expressão gráfica e fônica do conteúdo. Ao se tratar de uma substância expressiva gráfica, esta tem uma forma expressiva fônica. Hjelmslev utiliza como exemplo o topônimo "Berlim" (substância da expressão), que se traduz em formas de expressão diferentes em função de que se pronuncie (e atualize) em alemão, inglês, dinamarquês ou japonês3. Se, por outro lado, se trata de uma substância expressiva fônica, tem sua forma de expressão gráfica. Para ilustrá-lo, Hjelmslev se vale do exemplo do som /got/, que corresponde a diferentes formas de expressão e substância de conteúdo dependendo da língua. A pronúncia de got é a forma gráfica da expressão que, em inglês, corresponde à substância de conteúdo "passado de get", mas também corresponde à pronúncia de Gott, a forma gráfica da substância de conteúdo do alemão "Deus", e é como a pronúncia de godt, forma gráfica da expressão que em dinamarquês corresponde à substância de conteúdo de "bem";

forma da expressão: é o modo em que se atualiza a substância da expressão, ou seja, o modo como se pronuncia uma forma gráfica ou se escreve uma forma fônica.

A distinção que estabelece Hjelmslev entre o plano da expressão e o do conteúdo permanece na tradutologia de Torop, que postula que o plano da expressão (substância e forma) do original é

recoded - through the means of the other language and the other culture - into the expression plan of the translated text, while the content plan is transposed into the content plan of the translated text4. (recodificado, mediante o outro idioma e a outra cultura, no plano de expressão do texto traduzido, enquanto que o plano do conteúdo se transpõe para o plano de conteúdo da tradução).

Por recodificação entendemos um processo lingüístico, formal e estilístico, enquanto a transposição é um processo que, no caso do texto literário, implica a compreensão do modelo poético, da estrutura de conteúdo do texto. Os dois processos não são, porém, independentes entre si: estão inter-relacionados no plano metodológico, embora no âmbito tradutológico convém considerá-los em separado, para entender melhor suas diferentes funções no contexto do processo tradutivo.

Na unidade anterior, estabeleceu-se uma distinção entre as fases de análise e de síntese; Torop, por sua vez, serve-se de um modelo que é resultado da divisão em fases (análise/síntese) e da distinção entre processos (recodificação/transposição). Com estas duas duplas de elementos, Torop obtém uma quadripartição das traduções possíveis.

Antes de formular um esquema taxonômico dos diversos tipos de tradução, Torop se apressa a estabelecer o que se entende por "tradução adequada": é uma tradução na qual a transposição e a recodificação atravessam as fases de análise e síntese conservando a inter-relação peculiar entre os planos de expressão e conteúdo de um texto determinado; em outras palavras, se conserva o dominante do original.

Para conservar as inter-relações peculiares entre os planos de expressão e conteúdo (para preservar o dominante do original) há, porém, vários instrumentos: e, dependendo dos meios escolhidos, produzem-se várias traduções igualmente "adequadas"5. Torop subdivide as traduções "adequadas" em "centrada no dominante" [dominantnye] e "autônoma", ou seja, que tem o objetivo de transmitir somente um dos planos do prototexto. Por exemplo, a tradução de um poema em prosa é uma tradução autônoma6.

Combinando a quadripartição análise/síntese e transposição/recodificação com a dicotomia dominante/autônoma, Torop cria o seguinte modelo de oito partes7.

tradução adequada

recodificação

transposição

análise

síntese

análise

síntese

centrada em dominante

autônoma

centrada em dominante

autônoma

centrada em dominante

autônoma

centrada em dominante

autônoma

macroestilo

precisão

microestilo

citação

tema

descrição

expressão

liberdade

Na unidade seguinte, examinaremos este modelo mais detidamente.

 

Bibliografia

HJELMSLEV L. I fondamenti della teoria del linguaggio. Edit. Giulio C. Lepschy. Turín, Einaudi, 1975. Ed. or. Omkring Sprogteoriens Grundlæggelse, København, Festskrift udg. af Københavns Universitet, 1943. Tradução para o inglês: Prolegomena to a Theory of Language, ed. de F. J. Whitfield, University of Wisconsin, 1961.

TOROP P. La traduzione totale. Ed. de B. Osimo. Módena, Guaraldi Logos, 2000. ISBN 88-8049-195-4. Ed. or. Total´nyj perevod. Tartu, Tartu Ülikooli Kirjastus [Tartu University Press], 1995. ISBN 9985-56-122-8.


1 Hjelmslev 1975.
2 Hjelmslev 1975, p. 58.
3 Hjelmslev 1975, p. 61.
4 Torop 2000, p. 200.
5 Torop 2000, p. 200 sg.
6 Torop 2000, p. 56.
7 Torop 2000, p. 204.


 



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