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38 - A tradução e a teoria dos modelos

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Tal como temos observado, existem vários modelos possíveis de processo tradutivo e cada um tende a ressaltar certos componentes em detrimento de outros.

Nas primeiras unidades do curso analisamos o processo tradutivo, sobretudo como processo mental, destacando as implicações da psique do tradutor e a elaboração mental necessária.

A seguir, ao sublinhar a importância da cultura na tradução, comparamos o sistema mundial da cultura, ou semiosfera, com um intertexto gigantesco, dentro da qual todos os textos são traduções que não devem ser necessariamente interlingüísticas. Nenhum texto é "virgem" ou "puro" porque, no complexo sistema de influências recíprocas, todos os escritores, de maneira consciente ou inconsciente1, voluntária ou não, se apóiam em um patrimônio cultural pré-existente.

Deste ponto de vista, pode-se classificar um texto em função de que realize ou não um aporte ao já escrito. Neste último caso, podem distinguir-se várias possibilidades:

  1. textos que, sem aportar novos conceitos, se dirigem a diversas classes de leitores: por exemplo, textos didáticos, que explicam ao público geral conceitos previamente expostos em textos científicos (vulgarização, divulgação, adaptação, educação);
  2. textos que, sem aportar novos conceitos, se dirigem a leitores de culturas/línguas diferentes, para aqueles que, de outro modo, os prototextos seriam inacessíveis (traduções interlingüísticas, artigos, itens de enciclopédia);
  3. textos que, sem aportar novos conceitos, substituem prototextos negando sua existência, ou seja, fingindo ser prototextos (plágio, falsificação).

Além destes enfoques analíticos, e outros que não mencionamos aqui, como os lingüísticos e normativos, é possível considerar a tradução em si como um modelo: o texto traduzido representa, de modo explícito ou implícito, um texto prévio2 ou prototexto. Como na relação entre protótipo e modelo, o produto não é reversível na relação entre prototexto e tradução.

Em outras palavras, se traduzimos um texto para outro idioma e logo pedimos a alguém que retorne a tradução para o idioma original (tradução inversa), o resultado não será a obtenção do prototexto ou original. Isto acontece porque, como indicamos muitas vezes, o resultado do processo tradutivo depende do dominante que eleja o tradutor e da disposição dos subdominantes em ordem hierárquica. Em conseqüência, como vimos com clareza no muito citado esquema de Torop, não somente existem várias traduções adequadas, mas também vários tipos de tradução adequados de um mesmo texto. Mais ainda, nem sequer no âmbito didático (onde a existência do modelo normativo da tradução tem, em teoria, maior sentido) é possível determinar qual das duas traduções adequadas é "a melhor".

Outro elemento que, como assinala Hermans, tem em comum o conceito de tradução e o de modelo, é que, para que uma tradução possa ser considerada como tal, é necessário que uma coletividade ou núcleo social a reconheça como tradução3.

Ou seja, se eu traduzisse um soneto de Shakespeare para o português e o difundisse como meu, circularia como um texto original ou prototexto, até o momento em que se descobrisse o engano.

Pode dizer-se o mesmo de uma situação inversa: se publicar um livro de poesia própria e afirmar que é uma antologia de traduções de poetas contemporâneos de todo o mundo, o texto poderia circular como metatexto e todos o considerariam uma tradução (interlingüística).

Esta diferença é importante, em especial nas culturas que atribuem um valor diferente ao texto traduzido do que para o original; pelo contrário, podem existir culturas nas quais, uma vez estabelecido que os textos não surgem do nada, todos se equiparem aos metatextos, às "traduções" (sejam ou não interlingüísticas).

Outro elemento que modelo e tradução têm em comum é o fato de estar sujeitos a determinadas normas. Embora se rechace a idéia de que não se pode ensinar tradução como um conjunto de normas, em uma cultura dada existem sempre normas sociais que, ainda que de maneira inconsciente, impulsionam os tradutores a produzir metatextos que sejam considerados aceitáveis (em tal cultura).

Neste caso, o conceito de tradução modelo e o de modelo de cultura se entrecruzam, e o primeiro pode dar resultados concretos distintos em função da cultura concreta na qual se materializa 4.

Se, por exemplo, um tradutor decidisse traduzir o título da famosa obra de Dostoievski "Crime e castigo" como "Crime e punição", ao basear-se em uma análise mais atenta do original Prestuplenie i nakazanie e considerar que o título canônico em português está antiquado e não é uma tradução muito acertada, é possível que sua decisão não fosse bem recebida pela cultura de fala portuguesa. Neste caso haveria duas possibilidades: ou o tradutor possui suficiente prestígio e fontes sociais e econômicas para demonstrar que sua decisão é adequada e impô-la ao mercado literário, ou se verá obrigado a se retratar e aceitar o título antigo.

Esta breve análise da relação modelos/traduções serve como introdução ao conteúdo da próxima unidade: os tradutores na sociedade.

 

Bibliografia

BLOOM H. Poetry and Repression: Revisionism from Blake to Stevens. New Haven, Yale University Press, 1976. Tradução italiana: L'angoscia dell'influenza. Uma teoria della poesia, de Mario Diacono, Milão, Feltrinelli, 1983. ISBN 88-07-10001-0.

HERMANS T. Models of translation. In Routledge Encyclopedia of Translation Studies. Londres, Routledge, 1998, p. 154-157. ISBN 0-415-09380-5.


1 Bloom 1976.
2 Hermans 1998, p. 156.
3 Hermans 1998, p. 156.
4 Hermans 1998, p. 157.


 



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