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4 - Leitura e formação dos conceitos

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«Pensando bem, a leitura é
um ato necessariamente individual,
muito mais que o escrever»
1.

Nas unidades anteriores, analisamos o tema da percepção, em particular, da percepção das palavras. Um objeto, como uma palavra, evoca algo em nossa mente. Mas, enquanto um objeto evoca em nossa mente algo totalmente arbitrário e subjetivo - por exemplo, uma pessoa poderia fugir aterrorizada à vista de um inofensivo pente -, as palavras têm um significado, ao menos parcial, que está codificado e é válido para um número elevado de pessoas.

O investigador soviético Vygotsky (citado na primeira parte) estudou a formação do conceito no homem e sua relação com o aprendizado das palavras. Segundo Vygotsky, o papel desempenhado pelas palavras é fundamental: primeiro, aprende-se a relação entre um objeto, uma situação ou uma ação separada e uma palavra. Até este ponto não se aprendeu um conceito, mas tão só uma relação entre uma circunstância e um som/signo gráfico circunscrito. Em um experimento realizado por Saharov, colaborador de Vygotsky, são apresentados elementos de diferentes formas, tamanhos e cores, os chamados "blocos experimentais", atrás dos quais se escrevem palavras carentes de significado. A tarefa consiste em estabelecer vínculos conceituais entre formas, tamanhos, cores e "palavras novas". Estas são as conclusões de Vygotsky:

The formation of the concept is followed by its transfer to other objects: the subject is induced to use the new terms in talking about objects other than the experimental blocks, and to define their meaning in a generalized fashion (A formação do conceito é seguida pela sua transferência para outros objetos: o sujeito é induzido a utilizar os novos termos ao falar sobre objetos distintos dos blocos experimentais e a definir seu significado de uma maneira genérica)2.

A generalização se produz mediante uma espécie de cadeia de percepção -> palavra -> percepção -> palavra -> percepção, etc. (quer dizer, análise -> síntese -> análise -> síntese, etc.) pela qual as novas percepções induzem a formular novas palavras para descrevê-las, o que por sua vez leva a sistematizar a percepção para que seja possível, com um número finito de palavras, expressar percepções infinitas, dado que não existem duas percepções idênticas. As palavras se convertem em um meio para a formação de conceitos3.

Vygotsky estudou estes processos em adolescentes, embora, na verdade, esta cadeia de análise, síntese e ajuste do sentido atribuído às palavras, seguida e precedida de novas visões da realidade, não tem fim. Ao ler, alimentamos esta espiral, e isto nos ajuda a entender com facilidade por que duas leituras, embora se realizem em tempos distintos pela mesma pessoa e sobre o mesmo texto, nunca são idênticas. Isto será analisado com maior profundidade nas unidades dedicadas à relação entre leitura e interpretação.

No que diz respeito à formação de conceitos, podemos reiterar a distinção feita na primeira parte do curso sobre a consciência lingüística. Para que um indivíduo esteja apto a elaborar um conceito, é necessário que seja consciente do que conhece.

[...] consciousness and control appear only at a late stage in the development of a function, after it has been used and practiced unconsciously and spontaneously [...] We use the term nonconscious to distinguish what is not yet conscious from the Freudian "unconscious" resulting from repression, which is a late development, an effect of a relatively high differentiation of consciousness ([...] a consciência e o controle aparecem somente na última etapa do desenvolvimento de uma função, depois de ter sido utilizada e praticada de maneira inconsciente e espontânea [...] Utilizamos o termo «não consciente» para distinguir o que não é ainda consciente do termo freudiano "inconsciente", que é conseqüência da repressão, de um evento posterior, o efeito de uma diferenciação relativamente elevada da consciência) 4.

Uma criança que aprende o nexo entre a palavra "maçã" e o conjunto de frutas que se identificam com essa palavra, ou uma fruta determinada que pertence a esse conjunto, sabe "o que é uma maçã", mas ignora que sabe o que é uma maçã: carece de capacidade de abstração e, portanto, é incapaz de conceitualizar. Em outras palavras, passamos dos "conceitos espontâneos" descritos por Piaget5 aos conceitos conscientes.

A diferença entre o aprendizado de conceitos espontâneos, como "maçã", e o de conceitos "científicos", como "exploração", reside em que

[...] the development of the child's spontaneous concepts proceed upward, and the development of his scientific concepts downward [...]. The inception of a spontaneous concept can usually be traced to a face-to-face meeting with a concrete situation, while a scientific concept involves from the first a "mediated" attitude toward its object ([...] os conceitos espontâneos da criança se desenvolvem de baixo para cima, enquanto os conceitos científicos se desenvolvem de cima para abaixo [...]. O início de um conceito espontâneo normalmente está ligado a um encontro direto da criança com uma situação concreta, enquanto o conceito científico se inicia com uma relação mediata 6 com o objeto) 7.

Uma maior demonstração da afinidade entre esta consciência "conceitual" e a consciência lingüística, que se viu na primeira parte do curso, pode ser encontrada na afirmação de Vygotsky de que

The influence of scientific concepts on the mental development of the child is analogous to the effect of learning a foreign language, a process which is conscious and deliberate from the start. In one's native language, the primitive aspects of speech are acquired before the more complex ones. The latter presuppose some awareness of phonetic, grammatical, and syntactic forms. With a foreign language, the higher forms develop before spontaneous, fluent speech (A influência dos conceitos científicos no desenvolvimento mental da criança é análoga ao efeito do aprendizado de uma língua estrangeira, um processo que é consciente e deliberado desde o princípio. Na língua materna, os aspectos primitivos do discurso são adquiridos antes dos mais complexos. O último pressupõe certa consciência das formas fonéticas, gramaticais e sintáticas. Com uma língua estrangeira, as formas superiores se desenvolvem antes que a fala espontânea e fluida) 8.

Em termos de leitura, isto significa que um indivíduo está apto a lidar com textos de significados concretos até uma idade determinada, que se situa em torno do período pré-adolescente. A seguir, adquire a consciência de seu conhecimento e aprende textos que contêm significados abstratos. A medida que avança o desenvolvimento intelectual, se aguça a capacidade de abstração e evoluem os significados, tanto abstratos como concretos.

Na unidade seguinte, continuaremos nosso caminho pelas palavras, os pensamentos e a leitura, com o objetivo de ver as conseqüências de tal evolução na leitura e na tradução.

 

Bibliografia

CALVINO I. Se una notte d'inverno un viaggiatore, Turim, Einaudi, 1979.

VYGOTSKIJ L.S. Pensiero e linguaggio. Ricerche psicologiche. Ed. Luciano Mecacci. Bari, Laterza, 1990. ISBN 88-420-3588-2. Primeira edição: Myshlenie I rech´. Psihologicheskie issledovanija. Moskvà-Leningrad, Gosu-darstvennoe social´no-èkonomicheskoe izdatel´stvo, 1934.

LOSTIA M. Modelli della mente, modelli della persona. Le due anime della psicologia, Florença, Giunti, 1994. ISBN 88-09-20556-1.


1 Calvino 1979, p. 176.
2 Vygotskij 1990, p. 141.
3 Vygotskij, p. 142 e seguintes.
4 Vygotskij, p. 236 e seguintes.
5 Jean Piaget (1896-1980), psicólogo.
6 Em contraposição à relação imediata ou direta da criança com o objeto.
7 Vygotskij 1990, p. 286.
8 Vygotskij 1990, p. 289-290.


 



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